Antes de compartilhar com vocês o conteúdo publicado no livro "Educação em Direitos Humanos - Relatos de Experiência", é preciso dizer que uma das maiores dificuldades que senti ao escrever sobre a nossa experiência, foi o de utilizar a primeira ou terceira pessoa do singular. Parece-me ser um requisito para publicações de texto. Substituir termos como "nós fizemos", "nós pensamos" foi doloroso e é fácil explicar os motivos. NOSSO projeto é coletivo. Não existe eu, ele ou ela. A necessidade de definir quem fez, quem criou, quem desencadeou, exigiu um esforço extra e espero não ter reduzido a força de tudo o que refletimos, pesquisamos e aprendemos juntos.
De qualquer modo, a equipe da escola espera que a história sobre o projeto possa servir de incentivo e inspiração para todos aqueles que sonham com uma educação libertadora e igualitária.
PROJETO: O MUNDO DE AZIZI ABAYOMI E
SOFIA
Trata-se de um projeto coletivo
que atende ao previsto pelas Leis 10.639/03
e 11.645/08 no que se refere à obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana,
Cultura Afro-brasileira e Indígena nas escolas públicas e privadas do
território nacional, bem como a promoção de ações afirmativas sobre a Cultura e
História boliviana. Um projeto que, inspirado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, reconhece e valoriza a diversidade.
Em 2011, a gestão escolar
iniciou um projeto para a implantação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 por meio de
um questionamento feito aos professores. Ao perguntar ao grupo se haveria
atitudes racistas no universo infantil, ficou evidente a necessidade de
pesquisa e aprofundamento da questão diante das respostas obtidas.
Contradições, negações, incertezas e certezas absolutas foram algumas das
reações que a equipe gestora observou em relação ao tema. Evidentemente, neste
mesmo momento descobrimos que a resposta a esta questão só poderia ser, de
fato obtida depois de uma escuta atenta às falas infantis e do olhar atento de
todos os envolvidos na construção de novos conhecimentos. Desde então, a escola
tem se dedicado à promoção de ações coletivas e afirmativas pela igualdade
racial e pelo combate ao racismo, preconceito e qualquer tipo de discriminação.
São vários os movimentos que permeiam a prática administrativa e pedagógica,
garantindo, a cada período letivo, o fortalecimento da equipe, a abertura dos
portões da escola à comunidade, a realização de eventos abertos ao público e a participação em eventos externos.
Estes momentos são
caracterizados pela formação da equipe docente, da comunidade escolar e pela
divulgação do trabalho da escola por meio de encontros, entrevistas, rodas de
conversa, palestras, entre outros.
A parceria entre a gestão
escolar e os professores, o apoio da comunidade e de outras entidades foram determinantes
em várias fases da formação continuada. a saber: Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades – CEERT, Movimento Anarcopunk de São Paulo, Movimento
Negro, Artistas Plásticos, parcerias com autores de livros sobre a temática,
Instituto Avisa Lá, Diretoria Regional de Educação Freguesia/Brasilândia e a
Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo.
Os eventos promovidos pela
EMEI Guia Lopes trouxeram à tona discussões como: a intolerância religiosa; a sexualidade
na infância; o racismo na Educação Infantil, o mito da democracia racial, o branqueamento
da população brasileira, o consumismo, a influência da mídia e a
responsabilidade da instituição escolar na perpetuação do racismo, do
preconceito e de atitudes discriminatórias, contando com a aprovação e a participação
das famílias e da comunidade do entorno escolar.
A
Festa Afro-Brasileira substituiu as antigas festas juninas e povoou a escola
com elementos da cultura africana, explorando desde a sua musicalidade até a
exposição das indumentárias usadas nos ritos de umbanda e candomblé; gincanas
baseada no filme Kiriku, o casamento do Príncipe Azizi Abayomi com Sofia e a
história de amor que uniu o Brasil ao Continente Africano.
O
parto de Sofia, realizado pelas crianças, e as discussões de como seriam os
bebês Dayo e Henrique (suas características físicas e emocionais), as palestras
aos pais sobre sexualidade infantil,
as rodas de conversa com
outras unidades educacionais
da
rede municipal de ensino sobre a implan-tação da Lei 10.639/03, a apresentação
das crianças em eventos externos, a promoção de eventos abertos em parceria com
instituições e especialistas sobre as relações étnico-raciais no universo
infantil, a participação do coletivo escolar em eventos externos sobre a
igualdade racial na Educação Infantil, as passeatas infantis para homenagear
grandes personalidades negras do Brasil e do mundo são algumas das ações
incorporadas ao Projeto Político Pedagógico da escola.
Num salto ainda mais
ousado, a direção escolar construiu, nas redes sociais, novas formas de
divulgação do trabalho e ampliou as possibilidades de troca de experiências.
Por meio de álbuns de
fotos e de textos explicativos cada grupo de crianças ganhou um portfólio
virtual que conta a história do projeto didático e registra os momentos mais
marcantes deste percurso. Nas aulas de informática educativa, os álbuns foram revisitados
e possibilitaram, aos gestores, professores e alunos, traçar novos rumos para a
construção de saberes e fazeres da e na infância.
Além de facilitar o acompanhamento da
vida escolar de seus filhos, as redes sociais permitem a colaboração dos pais por
meio de críticas e sugestões ao trabalho pedagógico. A constante atualização do
blog com informações sobre o Projeto
Político Pedagógico desencadeia novas possibilidades de divulgação e amplia a
rede de trocas e de informações com um público interessado em educação, seja da
rede privada ou pública.
Um dos resultados mais expressivos
desta inovação é a escola ser requisitada para participar de eventos e
compartilhar sua prática. É comum a EMEI Guia Lopes receber visitas de
autoridades, professores e equipes gestoras de outras unidades educacionais
para conhecer de perto o trabalho desenvolvido pela escola.
Para operacionalizar a proposta
pedagógica da EMEI Guia Lopes, o coletivo escolar optou por adotar a Pedagogia
de Projetos que possibilita a organização necessária para a construção dos
conhecimentos, bem como a definição de metas previamente definidas, de forma
coletiva, entre alunos, professores e comunidade escolar.
O currículo por intermédio
de projetos constitui-se em uma metodologia de trabalho destinada a dar vida
aos conteúdos, tornando a escola mais atraente, valorizando o que os alunos já
sabem e respeitando o que desejam aprender naquele momento.
O projeto foi dividido em
quatro fases:
A primeira fase é a de
sensibilização para o tema, envolvendo ações que possam mobilizar o interesse
das crianças, das famílias e de todas as equipes da escola, por meio de figuras
de afeto representadas por espantalhos que compõem o imaginário infantil e por outro
projeto permanente denominado “Horta na Escola”, mantido há sete anos. Para
iniciar o trabalho com as relações étnico-raciais na Educação Infantil, surge a
figura de um príncipe africano de nome Azizi Abayomi (boneco espantalho).
Se em um primeiro momento nosso
objetivo era o de desconstruir alguns estereótipos de príncipes e princesas que
habitam o universo infantil, com a figura de Azizi Abayomi foi possível discutir
sobre a identidade de nossos alunos, o casamento inter-racial, a hereditariedade,
a diversidade cultural das famílias, as relações homoafetivas, a melanina, o
papel do homem na educação de seus filhos, a cultura boliviana e indígena, entre
outros.
Nesta fase, alguns filmes foram
utilizados no início dos estudos para despertar a curiosidade dos professores.
Algumas dinâmicas de grupo são imprescindíveis para o início de um projeto tão
rico e igualmente complexo. É neste momento que afloram as crenças pessoais,
que são confrontadas às diferentes percepções de mundo. Aguçados todos os
sentidos e apurados os processos de escuta e do olhar atento às manifestações
de racismo, é possível detectar de que forma a escola perpetua o preconceito e
a discriminação em suas rotinas diárias.
A gestão escolar conduz o
grupo de professores, funcionários, pais e crianças a um constante processo de
auto-observação e autoavaliação, refletindo sobre falas, atitudes e registros
que compõem o cenário educacional. Trata-se, portanto, de um momento em que o
respeito ao outro e, em especial, à identidade das crianças parece
ficar à flor da pele.
No início de cada ano, uma
série de ações coletivas é planejada pelas equipes gestora e docente, para que
fiquem claras nossas intenções pedagógicas e ao mesmo tempo possa ser garantido
o foco do trabalho com as questões raciais, de gênero e suas relações.
A segunda fase é o momento
de ampliação de repertório que envolve professores e crianças por meio de
estudo e sondagem sobre o tema a ser trabalhado. Cabe à gestão escolar a
formação docente, o desencadeamento das ações coletivas, a preparação do
ambiente escolar para viabilizar a construção de novos conhecimentos e o
acompanhamento sistemático da documentação pedagógica produzida pelos
professores e crianças. Após a grande revolução de sensações que o início do
projeto causa em seus participantes, é iniciado o estudo da história e cultura
africana, boliviana e indígena. A leitura e as novas dinâmicas dão conta de
mobilizar a atenção e mediar os interesses de crianças e professores em torno
da promoção de ações afirmativas para a igualdade racial na Educação Infantil.
A terceira fase é quando a
escola estimula o envolvimento das famílias e da comunidade, por meio de um
planejamento que mescle a participação efetiva dos pais na construção do
projeto, a divulgação dos caminhos percorridos e as conquistas de nossas
crianças. As reuniões do Conselho de escola e da Associação de Pais e Mestres
não são restritas aos membros que as compõem; a participação estende-se a todas
as famílias ou responsáveis, enriquecendo as discussões e compartilhando as
decisões. À medida que a teia de conhecimentos é construída por cada grupo de
crianças e professores, as famílias são chamadas a participar de eventos,
pesquisas, entrevistas e encontros individuais com os professores e gestores.
Os canais virtuais de comunicação possibilitam aos pais acompanhar diariamente
a rotina de seus filhos e o trabalho desenvolvido pela escola.
A quarta fase tematiza
todos os eventos previstos no calendário escolar e criados pela escola
(reuniões de pais, dia da família, rodas de conversas temáticas, palestras,
festas, mostra cultural).
Além do planejamento
semanal coletivo que garante o foco central de trabalho de todos os profissionais
da escola, o professor elabora sequências didáticas com atividades específicas
para cada grupo de crianças, respeitando suas características e interesses. A
gestão escolar constrói, anualmente, uma linha de tempos e espaços para cada
professor, possibilitando contaminar todos os ambientes escolares com ações
relativas ao projeto (cozinha experimental, sala de leitura, horta, laboratório
de informática, ludoteca, restaurante, brinquedoteca, sala de registro e espaço
de artes).
Nos momentos de cozinha
experimental, a criança realiza pesquisas e executa receitas africanas,
afro-brasileiras e bolivianas com a colaboração das famílias.
Algumas atividades permanentes nos auxiliam a
compartilhar os conhecimentos construídos com as crianças e os adultos da
escola, por meio das assembleias infantis.
É
incontestável as transformações pelas quais passaram todos os profissionais,
crianças e famílias envolvidas com o projeto “O mundo do Príncipe Africano
Azizi Abayomi e Sofia – um casal afro-brasileiro” e a inclusão da Lei 10.639/03
no currículo da EMEI Guia Lopes.
A elevação da autoestima de crianças e
famílias é fácil de ser comprovada quando a equipe da escola assiste ao surgimento
de líderes negros nos grupos/classes e temos notícias pelas redes sociais de
alunas negras que investem na carreira de modelos infantis.
Tornou-se comum ouvirmos relatos de
pais sobre histórias de racismo dentro da própria família e a satisfação de
perceberem a mudança de atitude de seus filhos diante das diferenças.
É possível perceber, nos depoimentos
dos professores, quantos desafios foram vencidos para garantir a qualidade do
projeto. A busca de estratégias didáticas que não ferissem as convicções
pessoais destes e dessem conta de alcançar os objetivos propostos foram
compartilhadas com a comunidade escolar. Em rodas de conversas com as crianças,
os profissionais da escola foram surpreendidos por uma visão infantil
libertadora e reconheceram suas limitações e dificuldades em tratar a
diversidade como uma condição fundamental para uma vida saudável.
Um fato marcante que amplificou os
resultados do trabalho com as relações étnico-raciais diz respeito às pichações
nazistas estampadas nos muros e portões da escola. A frase “Vamos cuidar do
futuro de nossas crianças brancas” foi uma resposta direta à sociedade, que
insiste em cultuar o mito da democracia racial brasileira e garantiu a
definição do projeto como uma atividade permanente na EMEI Guia Lopes.
A escola tem recebido um número cada
vez mais significativo de alunos bolivianos e portadores de necessidades
especiais, em consequência do seu excelente trabalho com a diversidade humana.
Nos eventos abertos à comunidade,
recebemos pais e professores interessados no Projeto da Escola, planejando
matricular seus filhos ou indicar a escola nos concursos de remoção promovidos
pela Secretaria Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.
Houve um fortalecimento das relações
entre família e escola. Os vínculos afetivos são tão sólidos que, apesar de as
crianças seguirem para o Ensino Fundamental, constantemente comparecem com suas
famílias aos eventos que a escola promove. É comum a direção receber comissões
de ex-alunos sedentos por novidades de Azizi Abayomi, o príncipe africano.
Além de se tornar referência pela
qualidade do trabalho que desenvolve, a escola marcou a vida de cada uma das
crianças como um espaço onde é possível viver e conviver com dignidade e
respeito.
Diante das conquistas pessoais de
todos os envolvidos no processo de desenvolvimento das crianças, não há como
retroceder.
A equipe de profissionais da EMEI Guia
Lopes acredita ter descoberto sua missão, que é a de educar para a igualdade e para
a garantia dos Direitos Humanos a todos. Dessa forma, não há limites ou prazos
para o término do projeto que envolve o príncipe africano Azizi Abayomi e sua
família. Ano após ano, novos atores constroem histórias fantásticas sobre as
relações humanas.
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