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quinta-feira, 17 de abril de 2014

Relato de Experiência - Projeto "O Mundo de Azizi Abayomi e Sofia"

Antes de compartilhar com vocês o conteúdo publicado no livro "Educação em Direitos Humanos - Relatos de Experiência", é preciso dizer que uma das maiores dificuldades que senti ao escrever sobre a nossa experiência, foi o de utilizar a primeira ou terceira pessoa do singular. Parece-me ser um requisito para publicações de texto. Substituir termos como "nós fizemos", "nós pensamos" foi doloroso e é fácil explicar os motivos. NOSSO projeto é coletivo. Não existe eu, ele ou ela. A necessidade de definir quem fez, quem criou, quem desencadeou, exigiu um esforço extra e espero não ter reduzido a força de tudo o que refletimos, pesquisamos e aprendemos juntos.
De qualquer modo, a equipe da escola espera que a história sobre o projeto possa servir de incentivo e inspiração para todos aqueles que sonham com uma educação libertadora e igualitária. 

PROJETO: O MUNDO DE AZIZI ABAYOMI E SOFIA


Trata-se de um projeto coletivo que atende ao previsto pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08 no que se refere à obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana, Cultura Afro-brasileira e Indígena nas escolas públicas e privadas do território nacional, bem como a promoção de ações afirmativas sobre a Cultura e História boliviana. Um projeto que, inspirado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhece e valoriza a diversidade.

Em 2011, a gestão escolar iniciou um projeto para a implantação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 por meio de um questionamento feito aos professores. Ao perguntar ao grupo se haveria atitudes racistas no universo infantil, ficou evidente a necessidade de pesquisa e aprofundamento da questão diante das respostas obtidas. Contradições, negações, incertezas e certezas absolutas foram algumas das reações que a equipe gestora observou em relação ao tema. Evidentemente, neste mesmo momento descobrimos que a resposta a esta questão só poderia ser, de fato obtida depois de uma escuta atenta às falas infantis e do olhar atento de todos os envolvidos na construção de novos conhecimentos. Desde então, a escola tem se dedicado à promoção de ações coletivas e afirmativas pela igualdade racial e pelo combate ao racismo, preconceito e qualquer tipo de discriminação. São vários os movimentos que permeiam a prática administrativa e pedagógica, garantindo, a cada período letivo, o fortalecimento da equipe, a abertura dos portões da escola à comunidade, a realização de eventos abertos ao público e a participação em eventos externos.
Estes momentos são caracterizados pela formação da equipe docente, da comunidade escolar e pela divulgação do trabalho da escola por meio de encontros, entrevistas, rodas de conversa, palestras, entre outros. 
         A parceria entre a gestão escolar e os professores, o apoio da comunidade e de outras entidades foram determinantes em várias fases da formação continuada.  a saber: Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, Movimento Anarcopunk de São Paulo, Movimento Negro, Artistas Plásticos, parcerias com autores de livros sobre a temática, Instituto Avisa Lá, Diretoria Regional de Educação Freguesia/Brasilândia e a Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo. 
       Os eventos promovidos pela EMEI Guia Lopes trouxeram à tona discussões como: a intolerância religiosa; a sexualidade na infância; o racismo na Educação Infantil, o mito da democracia racial, o branqueamento da população brasileira, o consumismo, a influência da mídia e a responsabilidade da instituição escolar na perpetuação do racismo, do preconceito e de atitudes discriminatórias, contando com a aprovação e a participação das famílias e da comunidade do entorno escolar.
A Festa Afro-Brasileira substituiu as antigas festas juninas e povoou a escola com elementos da cultura africana, explorando desde a sua musicalidade até a exposição das indumentárias usadas nos ritos de umbanda e candomblé; gincanas baseada no filme Kiriku, o casamento do Príncipe Azizi Abayomi com Sofia e a história de amor que uniu o Brasil ao Continente Africano.
O parto de Sofia, realizado pelas crianças, e as discussões de como seriam os bebês Dayo e Henrique (suas características físicas e emocionais), as palestras aos pais sobre sexualidade infantil, as rodas de conversa com outras unidades educacionais
 da rede municipal de ensino sobre a implan-tação da Lei 10.639/03, a apresentação das crianças em eventos externos, a promoção de eventos abertos em parceria com instituições e especialistas sobre as relações étnico-raciais no universo infantil, a participação do coletivo escolar em eventos externos sobre a igualdade racial na Educação Infantil, as passeatas infantis para homenagear grandes personalidades negras do Brasil e do mundo são algumas das ações incorporadas ao Projeto Político Pedagógico da escola.
Num salto ainda mais ousado, a direção escolar construiu, nas redes sociais, novas formas de divulgação do trabalho e ampliou as possibilidades de troca de experiências.
Por meio de álbuns de fotos e de textos explicativos cada grupo de crianças ganhou um portfólio virtual que conta a história do projeto didático e registra os momentos mais marcantes deste percurso. Nas aulas de informática educativa, os álbuns foram revisitados e possibilitaram, aos gestores, professores e alunos, traçar novos rumos para a construção de saberes e fazeres da e na infância.
          Além de facilitar o acompanhamento da vida escolar de seus filhos, as redes sociais permitem a colaboração dos pais por meio de críticas e sugestões ao trabalho pedagógico.               A constante atualização do blog com informações sobre o Projeto Político Pedagógico desencadeia novas possibilidades de divulgação e amplia a rede de trocas e de informações com um público interessado em educação, seja da rede privada ou pública.
        Um dos resultados mais expressivos desta inovação é a escola ser requisitada para participar de eventos e compartilhar sua prática. É comum a EMEI Guia Lopes receber visitas de autoridades, professores e equipes gestoras de outras unidades educacionais para conhecer de perto o trabalho desenvolvido pela escola. 

          Para operacionalizar a proposta pedagógica da EMEI Guia Lopes, o coletivo escolar optou por adotar a Pedagogia de Projetos que possibilita a organização necessária para a construção dos conhecimentos, bem como a definição de metas previamente definidas, de forma coletiva, entre alunos, professores e comunidade escolar.
O currículo por intermédio de projetos constitui-se em uma metodologia de trabalho destinada a dar vida aos conteúdos, tornando a escola mais atraente, valorizando o que os alunos já sabem e respeitando o que desejam aprender naquele momento.
 O projeto foi dividido em quatro fases:
 A primeira fase é a de sensibilização para o tema, envolvendo ações que possam mobilizar o interesse das crianças, das famílias e de todas as equipes da escola, por meio de figuras de afeto representadas por espantalhos que compõem o imaginário infantil e por outro projeto permanente denominado “Horta na Escola”, mantido há sete anos. Para iniciar o trabalho com as relações étnico-raciais na Educação Infantil, surge a figura de um príncipe africano de nome Azizi Abayomi (boneco espantalho). 
Se em um primeiro momento nosso objetivo era o de desconstruir alguns estereótipos de príncipes e princesas que habitam o universo infantil, com a figura de Azizi Abayomi foi possível discutir sobre a identidade de nossos alunos, o casamento inter-racial, a hereditariedade, a diversidade cultural das famílias, as relações homoafetivas, a melanina, o papel do homem na educação de seus filhos, a cultura boliviana e indígena, entre outros.
Nesta fase, alguns filmes foram utilizados no início dos estudos para despertar a curiosidade dos professores. Algumas dinâmicas de grupo são imprescindíveis para o início de um projeto tão rico e igualmente complexo. É neste momento que afloram as crenças pessoais, que são confrontadas às diferentes percepções de mundo. Aguçados todos os sentidos e apurados os processos de escuta e do olhar atento às manifestações de racismo, é possível detectar de que forma a escola perpetua o preconceito e a discriminação em suas rotinas diárias.
A gestão escolar conduz o grupo de professores, funcionários, pais e crianças a um constante processo de auto-observação e autoavaliação, refletindo sobre falas, atitudes e registros que compõem o cenário educacional. Trata-se, portanto, de um momento em que o respeito ao outro e, em especial,  à identidade das crianças parece ficar à flor da pele.
No início de cada ano, uma série de ações coletivas é planejada pelas equipes gestora e docente, para que fiquem claras nossas intenções pedagógicas e ao mesmo tempo possa ser garantido o foco do trabalho com as questões raciais, de gênero e suas relações.
A segunda fase é o momento de ampliação de repertório que envolve professores e crianças por meio de estudo e sondagem sobre o tema a ser trabalhado. Cabe à gestão escolar a formação docente, o desencadeamento das ações coletivas, a preparação do ambiente escolar para viabilizar a construção de novos conhecimentos e o acompanhamento sistemático da documentação pedagógica produzida pelos professores e crianças. Após a grande revolução de sensações que o início do projeto causa em seus participantes, é iniciado o estudo da história e cultura africana, boliviana e indígena. A leitura e as novas dinâmicas dão conta de mobilizar a atenção e mediar os interesses de crianças e professores em torno da promoção de ações afirmativas para a igualdade racial na Educação Infantil.
 Descobrimos e redescobrimos que, somente conhecendo a história que nos foi negada sobre o continente africano e suas influências na gênese da cultura brasileira, é possível desencadear um trabalho de combate à desigualdade racial. Conhecer os hábitos e costumes das famílias bolivianas possibilita superar a introspecção característica desta comunidade e constatar a importância cultural que a escola tem em suas vidas, tornando mais prazeroso o processo de socialização dessas crianças.
A terceira fase é quando a escola estimula o envolvimento das famílias e da comunidade, por meio de um planejamento que mescle a participação efetiva dos pais na construção do projeto, a divulgação dos caminhos percorridos e as conquistas de nossas crianças. As reuniões do Conselho de escola e da Associação de Pais e Mestres não são restritas aos membros que as compõem; a participação estende-se a todas as famílias ou responsáveis, enriquecendo as discussões e compartilhando as decisões. À medida que a teia de conhecimentos é construída por cada grupo de crianças e professores, as famílias são chamadas a participar de eventos, pesquisas, entrevistas e encontros individuais com os professores e gestores. Os canais virtuais de comunicação possibilitam aos pais acompanhar diariamente a rotina de seus filhos e o trabalho desenvolvido pela escola.
A quarta fase tematiza todos os eventos previstos no calendário escolar e criados pela escola (reuniões de pais, dia da família, rodas de conversas temáticas, palestras, festas, mostra cultural).
Além do planejamento semanal coletivo que garante o foco central de trabalho de todos os profissionais da escola, o professor elabora sequências didáticas com atividades específicas para cada grupo de crianças, respeitando suas características e interesses. A gestão escolar constrói, anualmente, uma linha de tempos e espaços para cada professor, possibilitando contaminar todos os ambientes escolares com ações relativas ao projeto (cozinha experimental, sala de leitura, horta, laboratório de informática, ludoteca, restaurante, brinquedoteca, sala de registro e espaço de artes).
Nos momentos de cozinha experimental, a criança realiza pesquisas e executa receitas africanas, afro-brasileiras e bolivianas com a colaboração das famílias.
 A Equipe Docente propõe jogos temáticos de várias etnias, apresenta versões de clássicos infantis com personagens negros, compartilha seu estudo sobre o início da agricultura e da medicina no Egito, apresenta obras de arte de artistas negros e bolivianos. No laboratório, o professor orientador de informática educativa possibilita à criança entrar em contato com curtas-metragens de diferentes culturas, com jogos virtuais temáticos e propõe a releitura de obras de arte dos temas que estão sendo apresentados pelo projeto.
        Algumas atividades permanentes nos auxiliam a compartilhar os conhecimentos construídos com as crianças e os adultos da escola, por meio das assembleias infantis.
            É incontestável as transformações pelas quais passaram todos os profissionais, crianças e famílias envolvidas com o projeto “O mundo do Príncipe Africano Azizi Abayomi e Sofia – um casal afro-brasileiro” e a inclusão da Lei 10.639/03 no currículo da EMEI Guia Lopes.
          A elevação da autoestima de crianças e famílias é fácil de ser comprovada quando a equipe da escola assiste ao surgimento de líderes negros nos grupos/classes e temos notícias pelas redes sociais de alunas negras que investem na carreira de modelos infantis. 
Tornou-se comum ouvirmos relatos de pais sobre histórias de racismo dentro da própria família e a satisfação de perceberem a mudança de atitude de seus filhos diante das diferenças.
        É possível perceber, nos depoimentos dos professores, quantos desafios foram vencidos para garantir a qualidade do projeto. A busca de estratégias didáticas que não ferissem as convicções pessoais destes e dessem conta de alcançar os objetivos propostos foram compartilhadas com a comunidade escolar. Em rodas de conversas com as crianças, os profissionais da escola foram surpreendidos por uma visão infantil libertadora e reconheceram suas limitações e dificuldades em tratar a diversidade como uma condição fundamental para uma vida saudável.
       Um fato marcante que amplificou os resultados do trabalho com as relações étnico-raciais diz respeito às pichações nazistas estampadas nos muros e portões da escola. A frase “Vamos cuidar do futuro de nossas crianças brancas” foi uma resposta direta à sociedade, que insiste em cultuar o mito da democracia racial brasileira e garantiu a definição do projeto como uma atividade permanente na EMEI Guia Lopes. 
A escola tem recebido um número cada vez mais significativo de alunos bolivianos e portadores de necessidades especiais, em consequência do seu excelente trabalho com a diversidade humana.
            Nos eventos abertos à comunidade, recebemos pais e professores interessados no Projeto da Escola, planejando matricular seus filhos ou indicar a escola nos concursos de remoção promovidos pela Secretaria Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.
               Houve um fortalecimento das relações entre família e escola. Os vínculos afetivos são tão sólidos que, apesar de as crianças seguirem para o Ensino Fundamental, constantemente comparecem com suas famílias aos eventos que a escola promove. É comum a direção receber comissões de ex-alunos sedentos por novidades de Azizi Abayomi, o príncipe africano.
         Além de se tornar referência pela qualidade do trabalho que desenvolve, a escola marcou a vida de cada uma das crianças como um espaço onde é possível viver e conviver com dignidade e respeito.
Diante das conquistas pessoais de todos os envolvidos no processo de desenvolvimento das crianças, não há como retroceder.
           A equipe de profissionais da EMEI Guia Lopes acredita ter descoberto sua missão, que é a de educar para a igualdade e para a garantia dos Direitos Humanos a todos. Dessa forma, não há limites ou prazos para o término do projeto que envolve o príncipe africano Azizi Abayomi e sua família. Ano após ano, novos atores constroem histórias fantásticas sobre as relações humanas.

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